Um livro de contos macabros, com requintes de terror e pânico para crianças em fase de alfabetização e letramento de escolas públicas, vem recebendo severas críticas de pais, professores e políticos. Essa reprovação acontece porque, na intenção deliberada de provocar medo no leitor, os organizadores recorreram a relatos de magia negra, bruxaria, feitiçaria, aparição de espíritos, demonismo, maldade com pessoas e animais, além de assassinatos.
O programa escolar de leitura e escrita que resultou no livro de contos BÚ! Histórias de Medo e Coragem, é uma iniciativa da empresa espanhola de energia, Endesa Brasil, em parceria com o Ministério da Cultura e publicado com ajuda da Lei de Incentivo à Cultura. Desde o começo deste ano, a obra é distribuída para escolas públicas e utilizada no processo de alfabetização e também letramento de crianças do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental.
No ano passado, a empresa realizou um concurso literário em 516 escolas de 19 municípios dos estados onde está estabelecida: Ceará, Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Os 39 contos selecionados para o livro foram (re)escritos por crianças com idades entre 9 e 12 anos, inspirados pelas oficinas de leitura e contação de histórias sobre pânico e terror.
As adaptações e acréscimos que os alunos fizeram às histórias tiveram supervisão e ajustes dos seus professores de Língua Portuguesa, que receberam material didático e treinamento específico para a execução do Projeto.
Antes de continuar a leitura do artigo, leia o título de cada um dos 39 contos.
A reclamação dos opositores ao livro é justificada pelas alegações de que as histórias não se enquadram no cânon socialmente convencionado do folclore brasileiro, nem como releitura, e lidam sem escrúpulos com delicados temas da religião e do ocultismo.
Outra observação dos críticos é que não basta considerar o imaginário das crianças-autoras, mas também reconhecer as diferenças de crença na escola. Ainda mais quando algumas das narrativas contrariam convicções simbólico-religiosas da maioria cristã que frequenta a escola.
Pelo visto, a organização do livro segue a linha materialista para quem todas as substâncias são reduzidas ao mundo físico. Sendo assim, o que religiosos chamam de realidade que transcende à matéria, teria sua existência apenas no âmbito da linguagem e da imaginação.
De acordo com essa perspectiva, as crenças religiosas se confundem com a superstição. Portanto, os seres e os fenômenos sobrenaturais da religião são da mesma categoria e existência dos seres e fenômenos das narrativas ficcionais. Como o transcendente não existe, ele não pode exigir respeito e não interfere no mundo natural. É por isso que se permite contra ele a burla, o escárnio, a subversão e o ridículo.
Aqui reside o conflito. Os religiosos (cristãos ou não) creem na realidade do sobrenatural e, consequentemente, na revelação que têm da natureza e atributos dos seres espirituais. Para estes, é perfeitamente factível que seres espirituais atuem na dimensão física, inclusive influenciando a vida das pessoas.
Dessa maneira, expressões como Deus, diabo, satanás, demônio, anjos, alma, espírito, feitiço, bruxaria e magia negra não se encerram no campo do discurso ou da linguagem. Tudo isto tem sentido de verdade absoluta que ultrapassa as limitações naturais, um significado diferente do pensamento materialista.
Diante do exposto, é clara a existência de dois sistemas de crença que se opõem e são inconciliáveis. E esse conflito termina por se instalar na escola quando um dos sistemas procura fazer com que seu discurso prevaleça sobre o outro.
Ao se defenderem, os que produzem esse tipo de literatura escolar acreditando na nulidade dos seus esfeitos espirituais, condenam a interferência religiosa na liberdade de expressão para a criação literária. Nesse caso, invocam a laicidade do estado. Eles mesmos, porém, desobedecem esse princípio constitucional porque ideologicamente negam, satirizam, execram e promovem o apagamento da religião. Pois bem. Fingem esquecer que a escola pública não tem a função de construir ou desconstruir pensamento religioso.
Leia a íntegra de dois contos que fazem parte do livro:
O terror da cidade
Um dia em uma cidadezinha qualquer nasceu uma criança, que mesmo sem falar ou andar já fazia o mal. Seu olhar era obscuro e assustava todo mundo, até os seus pais. Quando era bem pequeno ainda, pegou álcool no armário da cozinha, jogou na casa do vizinho e tacou fogo, só porque esse vizinho tinha reclamado dele para seus pais, devido a ele sempre bater no seu filho.
O tempo passou e o menino cresceu cada dia mais malvado, fez muita coisa errada e até sofreu um acidente quando pulava um muro roubando seus vizinhos. Nesse acidente ele ficou paralítico. E mesmo assim não aprendeu a ser melhor. Até mesmo velho e de cadeira de rodas aprontava das suas.
Um dia ele estava andando pela rua e viu um menino passando com um senhor. O senhor o encarou, pois reconheceu que aquele velho era o garotinho que incendiou a casa dos seus pais, fazendo-os ficarem na rua. O senhor contou tudo para seu filho que, zangado, empurrou o velho da calçada.
Ele ficou caído no chão, no meio da rua, quando um carro em alta velocidade o atropelou. O velho perdeu muito sangue e morreu.
Inesperadamente, do meio do sangue dele saiu um bicho ruim, dizem que era o diabo que veio buscá-lo. Então o velho virou um monstro terrível. O diabo deu o nome para ele de 'O terror da cidade'. Agora ele era um espírito do mal, dos seus olhos saía sangue todas as vezes que via crianças malcriadas.
Dizem que todas as noites de Sexta-Feira 13 seu espírito ainda aparece para se vingar das crianças. Quando ele vê uma criança fazendo maldade, vai até a porta da frente e bate, chamando a atenção dos pais. Enquanto isso, ele aparece no quarto para pegá-las e transformá-las em monstrinhos escravos, que são obrigados a fazer tudo o que ele quer. É por esse motivo que os pais não deixam seus filhos sozinhos e nem atendem à porta nas noites de Sexta-Feira 13.

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Observe a faca suja de sangue
Trechos de 5 contos do livro:
Uma noite terrível
"Dona Bruxela tinha uma vizinha que ela não gostava, vivia discutindo pra ver se a vizinha iria embora. Certo dia resolveu que iria fazer uma bruxaria para afastar a vizinha para bem longe. Pegou uns fios de cabeço da vizinha, perna de cururu, cabeça de calango, teias de aranhas, veneno de cobra, dentre de cachorro e olho de jacaré. Mas quando foi realizar a bruxaria e começou a falar 'sim salabim salabim bim bim', de repente a Bruxela começou a sentir uma quentura que vinha do chão."
A flor enfeitiçada
"Era uma vez uma menina muito ingênua. Um dia ela foi passear e, no meio do caminho, encontrou uma velhinha que vendia flores. Ela comprou uma flor, mas não sabia que aquela flor tinha feitiço.
(...) A mãe não acreditou na velhinha e botou ela pra fora. A mãe foi dormir e, quando ela fechou os olhos, de repente a velhinha apareceu no quarto com uma faca e, furiosa, matou a mãe da menina. A feiticeira pegou a menina e levou para o além."
A bruxa e as crianças
"No dia da festa vieram muitos animais e o feiticeiro da floresta. A bruxa começou a dançar com o feiticeiro perto de um caldeirão e os dois meninos os empurraram dentro do fogo, e jogaram muita lenha, deixando-os sufocados. Eles morreram queimados. Os meninos deixaram a casa de chocolate e voltaram para casa."
Uma noite no cemitério
"O espírito do menino disse:
- Deixem que nos apresentem, somos espíritos. O meu nome é João e o dela é Maria Júlia, e vocês devem ser Larinha, Hemilly Maria, Ana Carolina e Maria Júlia. Elas estavam paralisadas de medo."
Ataque de zumbis
"Esse antídoto era feito de asa de morcego, olho de sapo, ossos de gaivota, sangue humano O positivo, pó de café e tinta."
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Ao trabalharem esses contos na alfabetização e no letramento de crianças filhas de cristãos (romanos, ortodoxos ou protestantes) eles agridem a fé desses grupos. Os feitiços, rituais de magia negra e confissões satânicas não são encarados por essas famílias como simples brincadeiras com o sagrado, mas despertam nelas temores reais e crença em maldições físicas e espirituais.
Não que devesse existir limites de expressão para a criação literária. Mesmo para estes contos, com suas concepções ideológicas. Em se tratando da educação de crianças na escola pública, deveria haver bom senso e critérios consensuais para a ministração do conteúdo. Um dos critérios, poderia ser o consentimento da família para que a criança tivesse acesso às narrativas.
Seguindo este critério, vale perguntar:
a) Quem são os 3.067 sujeitos-autores que participaram do concurso que originou este livro?
b) Qual a religião das suas famílias?
c) As famílias tiveram conhecimento prévio dos tipos de história motivadoras que o Projeto desenvolveu com os alunos?
d) Depois de ouvirem histórias macabras e de ocultismo e se inspirarem nelas para escreverem seus contos, como estão as emoções destes alunos hoje?
e) É possível afirmar que alunos-autores que se inseriram no processo de leitura e produção dos textos do livro evoluem para uma visão cética sobre religião? O mesmo se dá com alunos-leitores dos textos na alfabetização e no letramento?
Mais considerações
Em certo sentido, pode-se considerar de boa intenção e com acerto a iniciativa do Programa Endesa Brasil de Educação e Cultura em auxiliar escolas públicas no processo de alfabetização e letramento de seus alunos. Ainda mais quando se trata de estimular a pesquisa e desenvolver habilidades de (re)leitura e (re)escrita, um dos desafios que a educação brasileira precisa enfrentar com mais urgência e determinação.
É sabida a utilidade das histórias de ficção (contos, lendas, parlendas) para a formação e afirmação de valores e do caráter. Da mesma forma, as histórias que provocam o medo e estimulam a coragem têm a importância de preparar o indivíduo para o enfrentamento das situações reais encontradas na vida.
Nas famílias e na sociedade muitas histórias que fazem parte do acervo coletivo são tradicionalmente apresentadas às crianças, com essas finalidades. É lógico, porém, que as famílias e a sociedade, de acordo com seus valores culturais e religiosos, exercem uma censura própria para os dizeres que chegam aos seus filhos.
Em vista disso, é possível supor que os motivos para os questionamentos ao Projeto não estão ligados à escolha do tema "histórias de medo e coragem", mas ao tipo de história contada e também à classificação etária. Certamente o livro não estaria encontrando resistência de professores, políticos e pais se os organizadores tivessem tido o cuidado de escolher histórias convencionais que também provocassem medo e coragem.
Portanto, faltou sensibilidade sócio-cultural aos organizadores do Projeto ao promoverem a banalização do macabro e do sobrenatural, susceptíveis de discordâncias e rejeição por uma parcela considerável de pais e professores. Com isso, é provável que tenham trazido sérias dificuldades para o futuro do Projeto, à medida em que mais pais e professores tenham acesso ao material.
Uma iniciativa que tinha tudo para beneficiar a educação pública de crianças, sobretudo no desenvolvimento do imaginário, da expressividade, leitura e escrita, é prejudicada por erro pedagógico primário ou mesmo um deliberado capricho ideológico.
Resta saber se é intenção da Endesa Brasil provocar esse acirramento ideológico na educação de crianças, causando contrariedade e choque em pais e professores. Outra questão é se a empresa está disposta a enfrentar a oposição das famílias e o consequente desgaste para sua imagem, na proporção em que elas forem tomando conhecimento do teor das narrativas dos contos.
Orley José da Silva, é professor em Goiânia, mestre em letras e linguística (UFG) e mestrando em estudos teológicos (SPRBC)
Anexos que subsidiam o texto:
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Esta é a capa do livro |
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Esta é a contra capa. |
Estes são alguns sites que se referem ao livro citado:
http://buhistoriasdemedoecoragem.com.br/
http://tv.diariodonordeste.com.br/video/diarinho/veja-trecho-do-projeto--bu--historias-de-medo-e-coragem-/364c1375c8d98c49f96f21bd41df8598
http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/vereadores-e-deputados-pedem-retirada-de-kit-sobre-terror-distribuido-em-escolas-de-goiania-14497/
http://www.boanoticia.org.br/noticias_detalhes.php?cod_secao=1&cod_noticia=5649